Panorama das Eleições na Europa

Foto: JENS SCHLUETER / AFP

“Extrema-direita mostra força nas eleições europeias”, "Por que a direita radical avançou tanto?", "Ultradireitista italiana Meloni se fortalece", "Extrema direita consegue resultado histórico". Manchetes como estas percorrem a internet com os resultados das eleições ao Parlamento Europeu, levando alguns a acreditar que algum movimento imenso tenha acontecido, confirmando para esses a sua noção de que o temido fascismo está em ascensão na Europa novamente. Bom, como muitos devem ter suspeitado, é muita fumaça para pouco fogo. Os partidos conservadores e nacionalistas de fato ganharam espaço no parlamento, mas tanto a radicalidade dos partidos quanto o impacto de seu crescimento são exagerados por sensacionalistas à direita e à esquerda. Mas, enquanto a coalizão governista deve continuar a mesma, o balanço de poder tende a reforçar o Partido Popular Europeu, dando a ele maior liberdade de promover seu programa de centro-direita dependendo menos da aprovação dos seus aliados à esquerda.

Quem compõe o Parlamento Europeu?

 O Parlamento Europeu tem como função principal a aprovação de leis propostas pela Comissão Europeia, cujos membros são escolhidos por cada governo nacional. A Comissão então escolhe um presidente que deve ser aprovado pelo Parlamento. O Parlamento atual, é composto por 705 deputados de sete grupos parlamentares: 

  • A Esquerda, formada por partidos socialistas e comunistas como A França Insubmissa (LFI) e o Bloco de Esquerda de Portugal. Se opõem geralmente à centralização da UE e expansão da OTAN, a favor de imigração maior e de um cessar-fogo na Ucrânia.
  • A Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), segundo maior grupo, formado por partidos de centro-esquerda e esquerda como o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e o Partido Social-Democrata da Alemanha (SDP). Estes esquerdistas tendem a ser apoiadores da reforma da União Europeia, transformando-a em uma espécie de federação. Apoiam também um apoio maior à Ucrânia e geralmente são favoráveis a maiores programas de importação e acolhimento a imigrantes e refugiados.
  • Os Verdes/Aliança Livre Europeia, formada por partidos ecologistas, regionalistas e separatistas como Os Verdes da Alemanha e a Esquerda Republicana da Catalunha. São favoráveis à integração europeia, aos refugiados e imigrantes, ao apoio à Ucrânia e ao Green Deal, um extenso projeto de transição energética e regulamentação agrícola.
  • O Renovar Europa (RE), formado por liberais como o Renascença da França e o Volt, partido pan-europeu. São os maiores apoiadores do federalismo europeu e promovem agendas progressistas, investimento em desenvolvimento econômico e uma política um pouco mais moderada quanto à imigração, além de apoio maior à Ucrânia e à OTAN.
  • O Partido Popular Europeu (PPE), maior grupo no parlamento, de democratas cristãos e direita liberal, junta os partidos de centro-direita da Europa como a União Democrata Cristã (CDU) da Alemanha, Os Republicanos da França e o Partido Popular da Espanha. São favoráveis a alguma centralização da UE, especialmente em questões de defesa e controle migratório, à expansão da OTAN e apoio à Ucrânia. Em questões internas, toma posições moderadas quanto à desregulamentação e ceticismo quanto a algumas causas progressistas. Lidera a coalizão governista atual.
  • Os Conservadores e Reformistas Europeus (CRE), grupo conservador, junta partidos como o PiS polonês, Vox da Espanha e os Irmãos da Itália (FdI). São céticos quanto à centralização da UE, mas defendem maior cooperação militar entre os membros, além de uma política de controle migratório mais rígida. Defendem também uma maior autonomia das nações em questões internas e têm um programa moderado de economia verde e desenvolvimento econômico europeu, além de se oporem ao progressismo na UE. São favoráveis à continuação do apoio à Ucrânia.
  • O Identidade e Democracia (ID), grupo que representa partidos nacionalistas como o Reagrupamento Nacional (RN) da França e a Liga da Itália, além de terem tido como membro a Alternativa Para a Alemanha (AfD), expulso do grupo pouco antes da eleição. Defendem uma maior descentralização da UE ou até a saída de seus países dela (como fez o Reino Unido) e menor envolvimento na guerra da Ucrânia, além de um distanciamento da OTAN. Como os CRE, opõem algumas agendas progressistas e a imigração.
  • Os Não-Inscritos (NI), os membros do parlamento sem grupo, como o AfD, o Fidesz da Hungria e a Confederação da Polônia. Geralmente são partidos à "extrema-direita" que não se encaixam no CRE ou ID por diversos motivos, como a política externa no caso do Fidesz.

Quem ganhou e quem perdeu?

 Para resumir, o principal vencedor foi o Partido Popular Europeu, da atual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Apesar do alarmismo da imprensa, a "extrema-direita" teve algum sucesso, mas foi limitado pelo fato de que von der Leyen precisa de uma maioria para ser eleita e não conseguiria o apoio necessário apelando para os grupos à sua direita. A atual coalizão governista, composta pelo PPE, RE e S&D, se entende como uma coalizão de centro e de moderados. A verdade é que infelizmente é a única coalizão possível no momento. Von der Leyen poderia teoricamente buscar apoio dos CRE, ID e não-inscritos de direita, mas o resultado disso seria uma ampla rejeição dentro de seu próprio partido devindo ao alinhamento com radicais ainda que os grupos conseguissem conciliar suas diferenças. Von der Leyen recentemente buscou se aproximar de Giorgia Meloni e os CRE, mas a resposta dos partidos de sua coalizão foi de rejeição completa, com a ameaça de bloquear sua candidatura à presidência do Comitê Europeu, seu órgão executivo.[1] Com resultados melhores, talvez seria possível uma coalizão RE-PPE-CRE, mas von der Leyen depende do apoio dos Socialistas para formar um governo e os partidos do RE não seriam tão abertos à inclusão dos CRE na coalizão. Assim, a coalizão de centro-esquerda a centro-direita deve continuar a governar a UE pelos próximos anos. Von der Leyen, com os resultados, comemorou sua vitória, dizendo que o "centro está segurando" contra os extremismos, ainda que tenha tentado negociar com ditos extremistas há pouco mais de um mês.[2]

 Mesmo assim, não fica tudo exatamente igual. Vejo em dois fatores uma mudança pequena, mas positiva para o governo europeu: Primeiro, a virada geral à direita levou também ao enfraquecimento do RE e S&D, dando ao PPE mais poder de decidir qual rumo a UE irá tomar. Decisões do PPE que antes não eram possíveis devido à força dos partidos à esquerda na coalizão encontrarão apoio nos partidos à direita e no próprio PPE, facilitando programas, por exemplo, de controle migratório. Segundo, o colapso dos Verdes. No último ano, propostas de regulamentações ambientais defendidos, entre outros, pelos Verdes na UE encontraram forte oposição dos agricultores europeus que frequentemente protestaram com "tratoradas" nas rodovias e, na Alemanha, os Verdes usaram de sua influência para promover uma transição energética que tem se mostrado desastrosa, influenciando as altas de preços de energia, desindustrialização e, ironicamente, degradação do meio ambiente com minas de carvão monstruosas. Perderam nesta eleição um quarto de seus deputados, dando o recado a eles e ao resto do parlamento de que a agenda verde radical não é mais tão bem vista entre os povos europeus. 

 Outro perdedor foram os federalistas europeus, como Emmanuel Macron. O RE, principal voz do federalismo, foi o grupo que mais perdeu deputados (23). A derrota deve-se principalmente à queda da popularidade de Macron na França, levando a um fortalecimento dos partidos de Marine Le Pen (ID), Jean-Luc Mélenchon (Esquerda) e Éric Zemmour (CRE). Sem um fortalecimento dos federalistas, o progresso da integração europeia deve continuar como está. Em casa, Macron jogou uma carta inusitada, dissolvendo a Assembleia Nacional da França e convocando eleições legislativas no final do mês. Especula-se que seja para entregar o legislativo para o RN, na esperança de que o partido decepcione no governo, perdendo força nas próximas eleições presidenciais na disputa com o sucessor de Macron.[3] Assim, devemos ver em breve um legislativo dominado por uma coalizão encabeçada pelo RN por alguns anos.

Extrema-Direita em Ascensão?

 Vamos ao que mais interessa: depois destas eleições, há de se haver esperança de uma guinada forte nacionalista e conservadora na Europa? Os partidos de direita, sejam dos CRE, ID ou não-inscritos, foram os que mais cresceram no parlamento, mas devo pontuar algumas observações quanto a isso.

 Primeiro: como disse, o crescimento não foi suficiente para que possa ser formada uma coalizão governista de direita. Se von der Leyen considerava a possibilidade de convidar os CRE ao governo, não parece que será possível graças ao desempenho dos Socialistas que mantiveram quase todos seus deputados. Ademais, ainda que os três grupos à direita juntos aos não-inscritos de direita tivessem deputados suficientes para formar um governo, eles estão longe de terem simpatia uns pelos outros, com rixas especialmente entre o PPE e ID que impossibilitariam um governo conjunto. Enquanto os partidos governistas atuais se opõem uns aos outros em alguns pontos menores, suas principais divergências são conciliáveis pois são divergências de grau: uns querem mais regulamentações, outros menos; uns querem mais imigrantes, outros menos; uns querem centralização maior, outros menor; mas a direção do movimento da política europeia é em grande parte compartilhada pelos partidos.

 Segundo: também há oposição entre os CRE e ID, que têm atitudes diferentes quanto à UE e especialmente à política externa da União. Enquanto os CRE são mais otimistas quanto à UE e se opõem ao governo russo em suas guerras, o ID tende a ver a UE como um mal que deve ser amenizado ou até eliminado e tem relações mais amistosas com a Rússia o que levou a investigações, algumas das quais indicam que esses recebem apoio para trabalharem pelos interesses russos. Graças a essas divergências, há dificuldade de cooperação entre os grupos, apesar dos rumores de que Marine Le Pen esteja tentando uni-los em um "supergrupo" de direita. Isso também dificulta a inclusão de outros partidos à direita que encontram-se não-inscritos, como é o caso do Fidesz, de Viktor Orbán. Orbán, apesar de liderar um governo mais similar aos governos de membros dos CRE, especialmente do PiS polonês, diverge destes pela sua proximidade aos russos e chineses e sua oposição às sanções contra a Rússia geralmente apoiadas pelos partidos do grupo. A Aliança Pela União dos Romenos, dos CRE, também ameaçou deixar o grupo se o Fidesz fosse admitido devido a disputas entre romenos e húngaras pela Transilvânia.[4]

 Terceiro: a expulsão do AfD do ID levou, no momento, a uma divisão maior ainda na direita e revela a rigidez do sistema liberal-democrático quanto a uma oposição mais forte. A Força Nova da Itália em dezembro de 2023 foi impedida de participar das eleições europeias por uma decisão judicial. O RN, de Le Pen, liderou nestes últimos dias, um movimento para a exclusão do AfD do seu grupo parlamentar devido a uma declaração de Maximilian Krah, que disse que nem todos os membros da SS deveriam ser vistos como criminosos. A aparente apologia ao nazismo levou à expulsão de Krah do partido, que parece estar tentando resolver sua disputa com Le Pen para poder voltar ao grupo europeu.[5] Por outro lado, o partido búlgaro Renascimento tem discutido com o AfD a possibilidade de formar outro bloco no parlamento, que provavelmente incluiria outros partidos à direita do ID, como a Confederação da Polônia ou o Movimento Nossa Pátria da Hungria. Para isto, precisam da adesão de vinte e três deputados de partidos de sete países constituintes da UE, o que parece pouco provável de acontecer.[6] Do lado que expulsou o AfD, vemos uma constante moderação nas posições dos membros franceses que parecem estar tentando acomodar-se ao mainstream e evitar controvérsias. Ainda que seja prudente e talvez justa a expulsão de Krah do grupo, jogar fora o AfD por inteiro debilitou o ID em troca de aprovação maior do sistema.

 Quarto: muitos dos deputados e partidos "de extrema-direita" decepcionariam aqueles que esperam um governo cristão. Talvez o melhor exemplo seja a própria Marine Le Pen, a "cabeça" do ID. Não deve ser novidade para muitos leitores que Le Pen passa longe de ser uma conservadora, defendendo pautas impensáveis para a "extrema-direita" da qual dizem que ela faz parte como o aborto pago pelo contribuinte, além de ter usado sua posição no partido para fazê-lo abandonar pautas como o retorno da pena de morte, a oposição às uniões homossexuais e moderando sua posição quanto à imigração. Se ela se opõe às expressões islâmicas como o uso do véu ou construção de minaretes, não é por nenhum sentimento cristão, mas um ódio à religião que tanto caracteriza a política radical francesa. Com a última crise na Nova Caledônia, colônia francesa no pacífico, foi alvo de críticas da Ação Francesa, que a veem como mera populista e não uma nacionalista de fato pela sua proposta de descolonização das ilhas francesas.[7] Nesta longa campanha pela qual a jacobina empurrou seu partido à esquerda, desentendeu-se com seu pai, Jean-Marie, o fundador do partido, expulsando-o. Mais recentemente, levou a sua sobrinha, Marion Maréchal, a deixar o RN para se juntar à Reconquista!, legenda mais conservadora de Éric Zemmour. Na Holanda, Geert Wilders, do Partido Pela Liberdade (PVV), também é pintado como um extremista de direita, mas, ao analisarmos suas posições, vemos que é só um liberal que vê o estilo de vida moderno dos holandeses ameaçado pela imigração islâmica. O AfD, mais controverso que esses outros partidos, é liderado por Alice Weidel, que vive num relacionamento lésbico. Weidel, apesar disso, se opõe ao "casamento" gay e as adoções por uniões homossexuais, mas é favorável às uniões civis.

 Quinto: mais brevemente, a inclusão de deputados mais conservadores no parlamento tem como efeito também dar voz a eles e ao seu eleitorado. Vimos a eleição do polonês Grzegorz Braun, da Confederação, além de mais 5 deputados de seu partido, que chamou a atenção devido ao um incidente ano passado quando Braun apagou uma menorá no congresso polonês com um extintor de incêndio.[8] A Confederação nestas eleições e nas últimas eleições polonesas ganhou espaço às custas do PiS, partido conservador que governava a Polônia, mas desencantou o povo em meio a promessas não cumpridas e escândalos de corrupção. Alguns de seus eleitores migraram para a direita mais liberal, enquanto outros migraram para a Confederação, de orientação mais firmemente nacionalista e tradicionalista. Também se observa isso na Hungria e, de maneira um pouco diferente, na Bulgária.

 Sexto: neste ano já houve eleições federais na Holanda, Portugal e Bulgária que mostraram um fortalecimento da direita. Mais tarde teremos ainda eleições na França e Áustria que devem também levar a partidos do ID ao governo. Com isto, a Comissão Europeia e o Conselho Europeu (formado pelos chefes de governo ou estado dos países membros) devem, junto ao parlamento, virar à direita. Em adição a isto, a presidência rotativa do Conselho Europeu cairá em breve nas mãos de Viktor Orbán, que presidirá as negociações sobre a direção que o governo europeu irá tomar nos próximos 6 meses. 

 Por último, há coisas para se prestar atenção nos próximos anos que ainda são incertas. A depender da vontade dos membros e das eleições seguintes em países como a Geórgia, a União Europeia pode se expandir em breve a países como a Macedônia, Bósnia, Montenegro, Turquia, Albânia e a já citada Geórgia. Cada uma enfrenta seus próprios impedimentos à ascensão à UE, especialmente a Turquia que, além de seus problemas fiscais e certo autoritarismo, encontra resistência de muitos partidos que não veem a Turquia exatamente como um país europeu. O grupo ID em geral também se opõe a qualquer expansão da UE. Com a conclusão futura da guerra na Ucrânia e a sua provável ascensão à UE, a sua política deve sofrer um câmbio radical, ainda mais se perder os oblasts orientais que têm uma minoria russa forte e, com o câmbio interno, é difícil prever como isso impactará a política interna da UE. Se a Rússia é derrotada, não seria surpreendente se víssemos uma mudança de governo da Rússia e na Bielorrússia, onde já há movimentos simpáticos à UE que contestam a ditadura russificante de Lukashenko, abrindo o caminho para uma União Europeia que se estende da fronteira russa ao Atlântico.

 Com a direita fortalecida nos governos nacionais e no Parlamento, Comissão e Concelho europeus, a esperança de mudança significativa não seria absurda, mas devemos nos manter céticos, já que a liberal-democracia sempre encontra sua maneira de neutralizar aqueles que se opõem à atual elite.

Autor: João Marcelo.

Notas:

[1] MOENS, Barbara. ROBERTS, Hannah. Von der Leyen tried to make friends with Meloni. It backfired. Disponível em: https://www.politico.eu/article/ursula-von-der-leyen-giorgia-meloni-italy-eu-election-far-right/

[2] EDWARDS, Christian. Far right surges in European Parliament elections but center still holds. Disponível em: https://edition.cnn.com/2024/06/09/europe/european-parliament-far-right-surge-intl/index.html

[3] LEALI, Giorgi. CAMUT, Nicolas. WAX, Eddy. Macron gambles on snap election to fight far-right surge. Disponível em: https://www.politico.eu/article/eu-european-election-results-2024-emmanuel-macron-dissolve-parliament-france/

[4] GRIERA, Max. Romania’s far-right threatens to pull out of ECR group in new blow to Orbán. Disponível em: https://www.euractiv.com/section/elections/news/romanias-far-right-threatens-to-pull-out-of-ecr-group-in-new-blow-to-orban/

[5] AHMATOVIĆ, Šejla. Far-right Alternative for Germany ejects Maximilian Krah, seeks way back into ID group. Disponível em: https://www.politico.eu/article/far-right-afd-group-alternative-for-germany-expel-maximilian-krah-scandal/

[6] BENAKIS, Theodoros. AfD is not alone. Bulgarian Revival offers partnership in a new group. Disponível em: https://www.europeaninterest.eu/afd-is-not-alone-bulgarian-revival-offers-partnership-in-a-new-group/

[7] GERMAIN, Philippe. Action française et droit du sang. Disponível em: https://www.actionfrancaise.net/2024/06/11/combat-royaliste-26/

[8] Washington Post. Polish lawmaker sprays menorah with fire extinguisher. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DtAdNBsTMkU

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem